“Burle Marx” e “Um Gosto de Sol”- Guignard e Livia Fontana

Existem poucos artistas que uniram arte e natureza como o fez Roberto Burle Marx. Lembrado por transformar os caminhos do paisagismo brasileiro, também encontramos seu espírito inventivo nas artes plásticas. Nas telas do artista, produzidas com aquela originalidade empírica tão aproveitada em vanguardas do século 20, não há espaço para previsibilidade. Em cada fragmento, há uma profusão de cores compondo uma comunhão de elementos que traduzem a vida; linhas se lançam, intercalam, criam campos sem limites definidos, como raízes em solo fértil. Suas práticas se comunicam em lógicas de construção mútuas, onde cada uma compõe uma dimensão possível de formas de ver e construir o mundo: ora são desenhos abstratos com linhas sinuosas e traços soltos, ora são trilhas afetivas cortadas com plantas exóticas. Logo, é ingênuo pensar que pintura e desenho são só desdobramentos em Burle Marx. Com isso em mente, esta exposição celebra a produção deste grande artista, que é verdadeiro protagonista na construção do imaginário visual brasileiro.

Além de possuirmos uma certa mania de ter fé na vida, nós brasileiros, sempre conseguimos ressignificar a nossa linguagem. E é pela linguagem que estruturamos as nossas paisagens. Nossa percepção é construída pelo que vemos, mas também constrói o que por nós é visto. Em Ouro Preto, Alberto da Veiga Guignard, avistou torres de igrejas na neblina, um estímulo de fora para dentro, de lá para cá. Diante do influxo, olho e mão do artista transmutaram o que foi observado e nos foi devolvido em ato poético. Nós, depois de conhecer suas obras, mesmo que pudéssemos ver a primeira imagem, a que ele viu, das torres na neblina, invariavelmente veríamos algo novo. O insumo externo seria somado com a memória do que vimos em Guignard e a paisagem vista seria outra. É por isso que contemplar pinturas como estas é ao mesmo tempo um deleite e um perigo. Corremos o risco de não vermos mais o mundo da mesma forma. Ocorre que se antes o pintor moldou nosso olhar para as paisagens mineiras, agora, Lívia Fontana está prestes a transformar o modo como vemos as pinturas que ele criou.

Como mestre, Guignard, tencionava a educação do olhar. Partindo sempre do desenho (com o lápis duro) e ensinando a primeiro imaginar para depois executar. Traços, que deveriam ser disciplinados já que pela dureza do lápis, apagar, corrigir ou mesmo adaptar um risco que marcou a folha de modo impreciso, era algo complicado. Amilcar de Castro, um de seus alunos notáveis, destaca que o método ajudava no processo de criação. É preciso incorporar os erros. Isso nos leva para outro ponto do legado de Guignard: o exercício da liberdade.

Em contraste com a disciplina da execução, o mestre incentiva a ousadia na criação de imagens. E é exatamente o que Lívia faz. Ela arrisca, analisa, desmonta, desconstrói, e nos presenteia com um gostinho de sol, que consegue extrair de obras e paisagens tão melancólicas quanto a própria vida de Guignard. Não seria demais imaginar que ele ficaria orgulhoso dela. Por um lado, ela rompe o gesto duro do lápis ao propor linhas que quase se esvaem umas nas outras, por outro apresenta cores vibrantes, que remetem ao pintor brasileiro, mas o atravessam, chegando ao fauvismo de Raoul Dufy, ao qual Guignard tanto gostava. Ela ainda educa o nosso olhar, ao dar ênfase nos planos, na bandeira, na cruz, nas alegorias, nas pessoas trabalhando e em cada detalhe presente nos quadros que é como se estivéssemos em uma visita guiada ao mundo onírico dele.

Para coroar o passeio temos ainda duas marinhas da Lagoa Santa e uma Paisagem de Itatiaia, pintadas por Guignard, onde o sol mesmo que tímido nos brinda, não apenas pela presença nas cenas, mas também pelas cores e texturas tão equilibradas e harmônicas. Falando de cores e luzes voltemos, por fim, nosso olhar também para opacidades e sombras, pois é nelas que o sol esquece e descansa, como diria Milton Nascimento na música que intitula essa mostra, e descansemos nosso olhar antes da próxima aventura.

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